Cheguei em casa com as compras do
mercado de orgânicos de que Clara tanto gostava. Não ficava longe, dois
quarteirões e meio. Havia ido a pé, deixara a bicicleta com a cesta que
normalmente utilizávamos. Uma linda manhã de sábado e o clima estava agradável.
Ao
entrar pelo velho portão que permitia a passagem pelo alto muro caiado de
branco que separava o belo jardim, nosso pequeno paraíso do resto do mundo,
Tomaz veio me receber como sempre. Às vezes passava o dia desaparecido, mas
bastava sairmos e ao chegar lá estava ele para nos receber. Estava com o pelo
mais brilhante e lustroso, de um preto oleoso que chegava a refratar os raios
do sol e parecer furta-cor. Passou a esfregar-se em minhas pernas pedindo
atenção, já que eu estava com as mãos ocupadas com o pacote de papel pardo.
Encontrei Clara na cozinha
preparando o almoço, depois do jardim, o local da casa que ela mais amava.
Ambos adorávamos a casa e já dividíamos o aluguel e as despesas há um bom
tempo. Também dividíamos a adoção de Tomaz que havia aparecido algumas semanas
após mudarmos. Ela estava de frente para a pia, lavando legumes e temperos colhidos em nosso jardim, usando um
vestido que deixava parte de suas costas nuas, permitindo ler a frase de Tomás
de Aquino que ela tanto gostava e havia tatuado entre as omoplatas: “In medio stat virtus”. Não conseguia deixar de achar graça quando lia e
lembrei-me da razão do gato se chamar Tomaz, ela havia insistido no nome, mas
eu tinha sugerido que mudássemos a grafia, já que ambos gostavam do músico Tomaz Lima e assim ele foi batizado.
Ao dar bom dia a Clara e largar as
compras na velha mesa de madeira, comecei a sentir uma ardência em minhas
canelas e panturrilhas expostas pelas bermudas e chinelos. Examinando mais de
perto percebi que estavam vermelhas e coçavam como se eu tivesse passado
através de uma moita de urtigas. Clara comentou que havia sentido a mesma coisa
nas mãos na noite passada, mas de uma forma mais leve e que passara um creme e,
nesta manhã, havia desaparecido. Pedi que ela me trouxesse o creme para ver se
aliviava a vermelhidão e a coceira, mas tinha outra coisa que me incomodava e
eu não sabia dizer “o quê”.
Mais tarde, enquanto lia em minha
poltrona preferida com vista para o jardim, e os pés elevados descansando em um
apoio, lembrei que Clara havia me chamado a atenção para algo “fora do comum”
que havia notado enquanto cuidava do jardim. Tomaz tinha o hábito de caçar e
brincar com taturanas, aquelas lagartas multicoloridas que formam casulos e se
metamorfoseiam em borboletas ou mariposas. Outros animais costumam evitá-las,
pois são normalmente venenosas. Clara ficou preocupada com Tomaz, mas elas
pareciam não lhe causar nenhum dano. Surpresos ficamos ao perceber que no final
das brincadeiras ele acabava por comê-las. Quando Clara encontrou-o devorando a
primeira taturana, um lindo espécime que apresentava as cores vermelho e verde
que berravam “não me coma, sou venenosa”, ficou tão apavorada que levou-o ao
veterinário. Ele não acreditou em sua história. Disse que Clara devia ter se
enganado, pois Tomaz estava em ótima forma.
Em outras ocasiões Clara encontrou
Tomaz degustando suas iguarias, mas como parecia não causar-lhe qualquer incômodo,
passou a considerá-lo normal. Extravagante, mas normal.
Logo começamos a relacionar as reações
alérgicas aos contatos com Tomaz. Toda vez que o
acariciávamos ou que ele encostava em alguma parte de nosso corpo onde a pele
estava exposta, logo apareciam as marcas vermelhas e a ardência.
No começo acreditamos que ele havia se
rolado em seu petisco preferido antes de comê-lo ou se roçado em alguma planta
como um arbusto de urtigas.
Tornamos a consultar o veterinário, e
mais uma vez ele nada encontrou de anormal. Mas não sabia explicar por que, ao
descalçar as luvas de borracha e acariciar Tomaz, rapidamente suas mãos ficaram
vermelhas e ardendo.
Tornamos a voltar para casa sem uma
solução. Abrimos a caixa e lá se foi Tomaz para o jardim.
Como não encontrássemos uma solução,
passamos a levar na brincadeira a situação. Gostamos muito de comida mexicana,
comentávamos que Tomaz também e que as taturanas eram a pimenta de seu
cardápio.
Como não podíamos evitar as reações
alérgicas, passamos a evitar o contato com Tomaz. Quando o fazíamos era
utilizando luvas de látex que ele odiava, pois elas geravam energia estática o
que deixava seu pelo todo eriçado.
Com o tempo, foi ficando triste e
quieto. Não sabíamos como agir. Tentamos de tudo, loções, fórmulas,
homeopatias... Nada funcionava.
Compramos brinquedos e uma cama nova, mas
ele não parecia se importar. Deixou de comer, não ia mais ao jardim e numa
manhã de domingo o encontramos morto junto ao velho portão, próximo ao jardim,
agora abandonado.