domingo, 7 de junho de 2015

Blues

A ponte tinha sido feita por um amigo em comum. Sabia da minha paixão pelo blues e me falou de uma amiga, segundo ele, também apaixonada pelo gênero.
          Não é do meu feitio ligar para uma completa desconhecida pra marcar um encontro às escuras, mas aquele dia estava me sentindo diferente e resolvi arriscar. No meio da tarde resolvi ligar. Estava cansado de ver sempre as mesmas caras já velhas conhecidas, nestas ocasiões. Seria bom o contato com sangue novo, quem sabe descobrir novas referências, trocar opiniões.
        Para a minha surpresa, apesar do convite em cima da hora, ela aceitou. Combinamos o encontro no bar onde um famoso guitarrista de Chicago iria se apresentar. A jam session prometia, o cara já havia tocado com Eric Clapton e com B.B. King, só pra começar.
      Cheguei cedo, sabia que a casa estaria lotada. Consegui uma boa mesa para dois e fiquei esperando, já meio arrependido. E se ela fosse uma chata, iria estragar uma noite com boa música. Aos poucos os conhecidos e parceiros de sempre começaram a chegar e a cada um tinha que explicar que estava esperando outra pessoa e não iria me juntar a eles. Aguentava as piadas de sempre com um meio sorriso.
        Só aÍ percebi que não havíamos combinado como iríamos nos reconhecer, havíamos nos falado pela primeira vez somente naquela tarde.  Agora já era tarde para se preocupar com esse detalhe.
        Eu era um dos poucos sozinho no bar, portanto não foi surpresa ver aquela bela moça dirigir-se à minha mesa. Com um belo sorriso se apresentou, sentamos e já em poucos minutos parecíamos velhos amigos. Ela tinha um sorriso cativante, olhos expressivos, um corpo bem cuidado, mãos e pés delicados e o cabelo cor de cobre que combinava com o seu tom de pele. Logo percebi que estava completamente envolvido pela garota. Tanto que o guitarrista começou o show programado e nenhum dos dois deu a mínima. Estávamos encantados um com o outro e o papo não nos permitia prestar atenção em qualquer coisa a não ser o que acontecia naquela mesa.
      O show começou, estendeu-se por mais de uma hora, teve bis, mas não percebemos uma única nota que ele tenha tocado. O show acabou, muitos foram embora e a noite já ia alta, mas nenhum dos dois parecia estar disposto a terminar o encontro. Tentávamos prolongá-lo por mais alguns momentos para não perder a sensação agradável que nos preenchia. Tínhamos muito em comum. A começar pelo blues e outros gêneros musicais, os mesmos artistas, principalmente os impressionistas, escritores e até nos esportes. Ambos adorávamos andar de bike. Praticamente todas as manhãs, quase como um ritual, pedalávamos antes de ir para o trabalho, provavelmente pelos mesmos lugares e provavelmente já havíamos nos cruzado em algum momento.
      Foi difícil decidirmos ir embora. Entendi, naquele momento o que Nietzsche queria dizer com o “eterno retorno”. Não queríamos que aquele momento acabasse. Bobagem, pois poderíamos retomá-lo no dia seguinte. E foi o que combinamos. Nos despedimos e fomos cada um para sua casa pois tínhamos compromissos agendados para o dia seguinte mas estava ansioso por nosso reencontro.
    Na manhã seguinte, não consegui acordar para minha costumeira volta de bicicleta. Servi  meu suco de laranja e enquanto preparava o café, liguei a TV para assistir o jornal matutino. Imediatamente apareceu na tela um acidente, até ai corriqueiro, infelizmente. Mas me chamou a atenção pois envolvia um carro e uma bicicleta. Fiquei mais atento ainda ao perceber que o ciclista era uma mulher. Mostraram o corpo de longe, pois a vítima havia morrido no local. Tentei desviar o olhar mas não consegui. Achei que o vermelho espalhado sobre o negro do asfalto era sangue que escorria da cabeça da ciclista por baixo do capacete branco e preto. Ao aproximar-me da tela para ver melhor, percebi que era o cabelo da ciclista sobre o asfalto. O copo com o suco escorregou-me da mão e espatifou-se no chão da cozinha...

segunda-feira, 1 de junho de 2015

Aridez

Plantei em ti meu carinho,
meu amor, minha dedicação.
Mais estéril que um deserto,
nada floresceu...

Na mais árida das searas,
surgem cactus, palmas e tunas.

Além dos espinhos
nascem flores, 
mesmo que por uma única noite,
seu raro perfume encanta
quem se arrisca.