sexta-feira, 21 de fevereiro de 2020

Just Mercy


Assim caminha a humanidade. Com passos de formiga. E sem, sem vontade. (Lulu Santos)
Mas, ainda bem que caminha. Percebemos com mais clareza quando a indústria, mesmo a do entretenimento, começa a assimilar novos conceitos e incorporar costumes. Claro que sempre haverá os corajosos, os primeiros a atravessar o rio. Mas, aos poucos podemos perceber a água mudando de cor. Aliás, muita água passou por baixo da ponte desde que Mississipi Em Chamas estreou em 1988. Um filme corajoso tratando da temática do racismo, mas ainda com dois atores brancos nos papeis principais (Gene Hackman e Willem Dafoe) e dirigidos pelo excelente Alan Parker. Mas, recentemente começamos a ter filmes estrelados por atores negros em papéis não caricatos ou estereotipados. O excelente Green Book que recebeu os Óscares de Melhor filme, Melhor Ator Coadjuvante (Mahershala Ali) e Melhor Roteiro Adaptado, para citar um exemplo. Existiram exceções como o Oscar de Melhor ator de 1964 para Sidney Poitier no ótimo Lilies of the Field.
Talvez o maior mérito de Just Mercy (Luta por Justiça), seja a excelente e comovente atuação dos atores principais, todos negros. A direção (Destin Daniel Cretton) não compromete o resultado, tratando o assunto (pena de morte e as injustiças irreparáveis), com o peso e a seriedade que o assunto exige. Claro que o racismo permeia toda a trama, mas talvez por retratar a época, é tratado como algo inerente aquela parte do pais (Alabama). As falhas que o sistema judiciário americano se permite beira ao inacreditável (nem gosto de imaginar o nosso), parecendo um roteiro escrito por um autor inepto, assombrando por se tratar de uma história real. O personagem bem representado pelo ótimo Michael B. Jordan nos remete a um Dom Quixote lutando contra gigantes que parecem imaginários e impossíveis de serem vencidos. A atuação de Jamie Foxx, apesar de contida, consegue passar a evolução que vai da conformidade à esperança. Um filme que vale ser visto pela qualidade, mas também por representar um marco na mudança de um paradigma, assim espero.

Festa da Carne


terça-feira, 18 de fevereiro de 2020

Ossain e Ogum



Cresci sob os cuidados de Vó Otília. Meus pais não tinham condições de cuidar de toda a prole e eu e minha irmã fomos abrigados em sua casa. Servíamos, também, como companhia já que meu avô morrera e ela morava sozinha.
Mulher simples e generosa, além de nós, amparava e cuidava da vizinhança. A casa vivia movimentada. Nos fundos tinha um pequeno quarto com uma cortina de contas na porta e várias prateleiras, uma mesa simples e duas cadeiras de madeira. Nas prateleiras, uma miríade de imagens de Santos, Orixás e outras Entidades. Velas, garrafas de bebidas, carteiras de cigarros, amuletos e pequenos alguidares com comida. Sobre a mesa, uma pequena toalha branca e uma peneira de palha cercada por colares de contas coloridas. Nela minha vó “via” o que afligia o coração das pessoas que a procuravam, “lendo” a sorte nas dezesseis conchas que ela deixava cair sobre a peneira. Um dia descobri que as conchas se chamavam “búzios” e não serviam a brincadeiras.
Tantas vezes vi chegarem homens e mulheres arrasados e desiludidos para depois de meia hora, saírem confortados, quando não esperançosos. Alguns retornavam com presentes que eram bem-vindos para reforçar a minguada pensão que minha vó recebia
A família era grande e bastante unida, nos finais de semana sempre tínhamos companhia para o almoço ou o jantar. As visitas chegavam trazendo travessas, panelas ou sacolas com compras do armazém. Por isso Vó Otília estranhou quando tia Zélia passou algum tempo sem aparecer. As notícias eram de que ela estava ocupada trabalhando para a nova congregação que se estabelecera a pouco na pequena cidade.
Passaram-se mais de seis meses sem vermos a tia Zélia, quando em uma tarde de sábado ela e minha prima chegaram. Trocaram beijos e abraços no pequeno alpendre e notei que minha tia usava uma espécie de guarda-pó e carregava um estojo embaixo do braço. Estaria trabalhando em uma escola ou em um ambulatório?
Minha vó foi fazer um chá e colocou sobre a mesa da cozinha um bolo de fubá recém assado. Quando minha tia abriu o estojo de couro, percebi que se tratava de um livro. Ela começou a correr o dedo pelas linhas do livro e recitar o que estava escrito. Nós, as crianças, estávamos muito mais interessadas no bolo, cujo o aroma enchia nossas narinas. Mal percebemos quando a discussão começou. Em seguida, minha tia invadiu a pequena sala onde Vó Otília jogava búzios e, enquanto recitava versículos da Bíblia, arremessava imagens nas paredes e no chão do cômodo.  Vó Otília tentava, inutilmente, impedi-la, sob nossos olhares estarrecidos. Só quando Vó Otília implorou por ajuda, despertamos. Cada um pegou a imagem mais próxima. Alcancei um São Benedito e um dos São Jorge que eram as imagens que minha vó mais gostava.  Pulando por sobre um cavalo sem São Jorge, miçangas, pipocas e cacos de garrafas saltei pela janela, sob protestos de minha tia e fui esconder-me na mata que começava logo após a pequena horta. Ficamos, eu e meus companheiros, na mata até escurecer. Quando retornei para casa, encontrei minha vó sentada quieta fumando seu pequeno cachimbo. O cômodo já havia sido limpo, apesar de ainda cheirar a cachaça. Pedi desculpas para Vó Otília por só ter conseguido salvar dois dos seus ídolos. Ela disse que não tinha importância, afinal aquilo tudo era gesso.
Mas a relação entre mãe e filha nunca mais foi a mesma. Vó Otília mandou instalar um cadeado na porta do quartinho que ela corria para trancar toda vez que Tia Zélia chegava.
Tempos depois minha vó adoeceu e voltamos a morar com meus pais. Antes de ir pedi para Vó Otília para levar as duas imagens que salvei da jihad.
Hoje, sempre olho para elas antes de lançar os búzios. 

*Obrigado a José Carlos Ribeiro que, no passado, me contou uma história parecida.