terça-feira, 26 de maio de 2020

Carta a um velho amigo


Querido e velho Amigo

Quando te tornaste um fascista?
Quando, aquele minúsculo homem (sim, o fascismo é masculino até quando usa saias), saiu do seu esfincter, passou por suas tripas, chegou ao coração e tomou as rédeas da razão.
Tantos jantares agradáveis, conversas sobre música, literatura, arte e eu não notei?
Tantas conquistas partilhadas, tristezas amparadas, mas certamente ele estava lá.
Discutimos religião, futebol, política e não vislumbrei nem a sua sombra?
Mas ele estava lá. Esperando o momento. Alimentando-se de toda a angústia, repressão, medo e desilusão.
Quando a oportunidade aflorou ele assumiu tua face o transformou? Ou somente o verniz rompeu e a máscara caiu?
Para onde ele enviou a empatia, a gentileza, a generosidade e o senso de ética?
Talvez estejam escondidos por trás do hipotálamo, do baço, ou figado? Aguardam uma nova oportunidade para reinar?
Assim é, assim será. O fascismo não sobrevive por muito tempo, queima rápido e traz arrependimentos. Quando passa, temos que olhar para as cinzas e tentar aprender a lição, mais uma vez.
Meu maior medo está em perceber que este pequeno tirano pode habitar em qualquer um. Inclusive em mim. 

Saudades 

quarta-feira, 20 de maio de 2020

Sedução

Sobre as chamas
O caldeirão fervia
Sob a água
Maçãs, figos em fatias
Cravo, canela e pimenta
Tudo ardia
Nos olhos, marejados, caprichosos
Servido em taças fumegantes
Para mundos rodopiantes
De luxúria, desejosos




quinta-feira, 7 de maio de 2020

Um Santo Voltando para Casa

A história começa com um mata-leão, um soco no estomago, um jeb de esquerda. O discurso de Mantovani na cerimônia de entrega do Nobel de Literatura poderia sair dos lábios de Kurt Cobain ou Bukowski. Porém, como Odisseu após a conquista de Troia, um vazio toma conta de seu espírito, tal qual um flamingo morto, deixando à deriva, por um bom tempo, sua criatividade. Sua agenda se resume a não ter uma agenda, recusando sistematicamente os convites para os mais variados eventos. Quando surge a oportunidade de retornar a sua Ítaca, digo, Salas, um pequeno povoado no sul da Argentina de onde saiu há 40 anos. No último lugar onde desejava estar, Mantovani se vê cercado por seus antigos personagens tendo que enfrentá-los. Mesmo abrindo concessões a seus conterrâneos, descobre que “santo de casa nem sempre faz milagres”. Antigos amores, velhas amizades, despertam desejos reprimidos, masculinidade frágil, reações violentas e manipulações políticas.
Mas, tanto o personagem quanto o ator desempenham muito bem seu papel. O pequeno povoado, excitado pela presença do ilustre filho, aos poucos vai perdendo o interesse diante do modo pouco estrelístico e cínico do escritor que reluta em participar das convenções provincianas. O povoado poderia estar situado no interior da Colômbia, Peru, Santa Lúcia, Trinidad e Tobago ou no Brasil, se tivéssemos um ganhador do Nobel (Argentina tem 5 ganhadores do Nobel, nenhum de literatura). Nas entrelinhas estão referências a Tolstoi e Fernando Pessoa.
Enfim, entre a descoberta da esperança de um novo talento ou dos remanescentes a sua última aula e a trágica cura para sua abstinência literária, renasce um autor que não abdica de seus princípios e só escreve quando tem algo a dizer.
Uma boa direção, um roteiro primoroso e o prêmio de melhor ator em Veneza. Qual seria o discurso de Martinez ao receber o Oscar? O Cidadão Ilustre é um grande filme. 

terça-feira, 5 de maio de 2020

Poesia Torta

Algo incomoda 
na poesia mal escrita
na letra feia e torta
que não diz o que importa

Dos Amores

Amores perfeitos
não sobrevivem
se existem 
somente no VHS
ou no vento sudoeste
para lá de Bangladesh

suportando o peso das horas
do tempo que escoa 
formando lagoas