quinta-feira, 23 de outubro de 2014

Short History

Clóvis acabara mais uma refeição solitária no restaurante chinês da esquina. Como de costume pediu um chá de jasmim e um biscoito da sorte.
Tomou um gole do chá  e abriu a embalagem do biscoito. Notou que estava diferente, o fornecedor devia ser novo. Antes a embalagem era um envelope plástico parecido com os saquinhos de mostarda e ketchup. Este vinha embrulhado em papel de seda, amarrado com uma fina fita dourada. Muito mais simpático. Devia ter algo a ver com a atitude ecologicamente correta.
Ao abrir o biscoito notou um leve flash de luz. Atribuiu ao reflexo da luz na pequena tira de papel que estava no interior do biscoito.
Para sua surpresa a inscrição da pequena tira de papel nada tinha em comum com as frases manjadas que costumavam vir nas vezes anteriores. Nem mesmo as seis dezenas grafadas no verso do papel, como palpite para jogar na mega, estavam lá.
Dizia simplesmente: "Faça um pedido e ele se realizará".
Achou aquilo estranho mas resolveu levar na brincadeira.
Já fazia um bom tempo que havia se divorciado e já estava ficando cansado de ficar só, mas não encontrava ninguém que lhe despertasse a atenção. Nos encontros o interesse pelo par raramente resistia ao segundo chopp.
Resolveu pedir: "gostaria de voltar a amar e encontrar alguém que me ame".
Pediu a conta e guardou o papelzinho no bolso por hábito. Pagou e deixo um pequeno agrado para o garçom, que já o tratava como amigo.
Dirigiu-se à porta, mas teve que esperar por um casal que passava a sua frente.
Ao chegar a calçada percebeu que o homem havia deixado cair a carteira. Imediatamente apanho-a e chamou-o.
O casal deu meia-volta e os olhos de Clóvis encontraram com os de Samanta.
Ele ficou sem fala, ela era linda, tinha os olhos de um azul violeta, ou era efeito das lâmpadas de vapor de mercúrio, pernas torneadas e uma saia curta sem chegar a ser vulgar, saltos altos e muito finos.
Voltou a si com a mão de Renato em seu ombro. Se ele notou sua confusão, não demonstrou.
Clóvis gaguejou: Tua carteira, deve ter caído...
Renato agradeceu, apanho a carteira, apresentou-se e apresentou Samanta.
O nome nunca mais sairia da sua cabeça.
Renato fez questão de retribuir. Convido-o para um happy hour no dia seguinte, por sua conta. Clóvis, interessado em não perder o contato com Samanta, aceitou.
Ele ainda segurava a mão de Samanta, prorrogando  o cumprimento com a conivência dela, mais por displicência e indiferença, do que por interesse.
No dia seguinte, conforme combinado, encontraram-se e ele teve que admitir que Renato era espirituoso e agradável. Combinaram outros encontros e até um jantar no apartamento de Renato.
Oportunidade que Clóvis secretamente desejava. Sentia-se um canalha, mas o que fazer? Desejava desesperadamente a mulher do amigo.
Durante o jantar, fez o que pode para chamar a atenção de Samanta. Mas ela parecia desinteressada nos assuntos do marido e do amigo. Não foi mais do que formalmente gentil e quando teve a chance, retirou-se deixando os dois a conversar.
Mesmo assim manteve a amizade com Renato na esperança de que, em algum momento, algo mudasse ou encontrasse uma maneira de declarar-se para ela.
Vários foram os encontros, mas a situação permanecia a mesma.
Já estava desanimado, mas, ao mesmo tempo, a amizade com Renato ficava cada dia mais sólida.
Em uma tarde quente, Renato liga para Clóvis e o intima a encontrar-se com ele após o trabalho. Tinha tomado uma decisão queria a opinião do amigo.
Encontraram-se no mesmo bar de sempre. Renato pediu dois chopps e com um ar constrangido falou que estava separando-se de Samanta. Seu casamento já não andava bem das pernas a algum tempo.
Clóvis sentiu um misto de tristeza e alegria. Teria uma chance com Samanta agora?
Para manter a conversa, Clóvis pergunta-lhe a razão de ter tomado a decisão naquele momento.
Renado diz que apaixonou-se por outra pessoa.

Olha nos olhos do amigo e pega-lhe a mão.

(Este foi meu primeiro conto)

domingo, 19 de outubro de 2014

Ponce de León

Tu és jovem e linda,
tens viço e ternura.

Eu, cansado, um pouco amargo.
Trago calos e cicatrizes,
magoas e muitas dores,
marcas de muitos matizes.

Beber em tua fonte me revigora,
mas o que terás em troca?
Cântaro seco,
ou vinho azedo?




domingo, 5 de outubro de 2014

A Paixão e a perda da Autonomia

É interessante observar um casal apaixonado. A forma como abdicam da própria autonomia em prol da vontade do outro impressiona quem não está sob o efeito desta droga formidável.
Kant  responsabiliza a preguiça e a covardia pela submissão da vontade do indivíduo. Não se ateve a este caso em que, voluntariamente, este entrega a direção da sua vontade a outro, e na maioria das vezes, mutuamente.
É claro que Kant não estava preocupado com isto.
Mas é uma força poderosa e instintiva que, talvez tenha a função de perpetuação da espécie, mas quando descontrolada, pode levar a ruína e destruição como tenta alertar-nos Eurípides em sua tragédia, onde a paixão renegada de Medéia leva-a vingança contra o amado e a destruição de tudo que lhe era mais caro.