Quando a viu pela primeira vez, quase caiu de joelhos. Seu coração fora atingido em cheio. Os olhos amendoados de um profundo negro, poço sem fundo onde a sua alma se perdeu. Não viu escapatória. Estava com a câmera, uma Leica M2. Havia vendido a alma para comprá-la. Primeiro emprego, acabara de sair da universidade formado em engenharia como o pai queria, mas a paixão sempre fora a fotografia. O instante mágico capturado pela lente que se eterniza.
- Posso tirar um retrato?
- Não sei, não te conheço.
- Mas a luz está ótima nos seus cabelos... (não conseguiu pensar em nada melhor, no momento)
Ela sorriu e o sol se apagou. Sentiu que tinha que capturar aquele momento, ele não duraria...
Agosto de 1965, tarde fria na praça, com o chafariz das nereidas como fundo. Diante do sorriso dela, tomou coragem e a convidou para andar até a confeitaria. Tomaram um café e comeram um pastel de Santa Clara. Ela riu dos gracejos dele. Ele achou charmoso as inseguranças que ela tinha em relação ao futuro.
Tempos difíceis, pensar no que dizer, desconfiar dos vizinhos. Colegas de trabalho em quem confiar? Seu exemplar de "O Capital", um do "The Catcher in the Rye" trazido por um amigo dos EUA e 1984 de George Orwell, jaziam embrulhados em muitas camadas de plástico sob um canteiro de margaridas na casa da mãe.
O primeiro encontro de verdade ocorreu em um dos clubes da cidade onde os pais dela eram sócios. Uma matine onde dançaram ao som de Sinatra e beberam Cuba Libre. Pouco tempo depois, noivaram. Em seguida o casamento. Vida ainda difícil, pouco dinheiro, aluguel, mercado. Muitas vezes fotografava, mas só revelava os filmes seis meses depois. Surpresas, fotos ótimas e outras ridículas que nem se lembrava de ter tirado.
Quando o primeiro filho nasceu, o mesmo sentimento de urgência se abateu sobre ele. Pediu ao médico autorização para acompanhar o parto, naquele tempo não era comum. Não contou para ninguém, mas sabe-se lá, vai que a criança não sobreviva muito tempo. Não tinha coragem de confessar nem mesmo a sua esposa, o que ela iria pensar? O médico concordou, tudo registrado, o primeiro choro de seu primogênito. Mais dois vieram e a mesma sensação de urgência.
As crianças cresceram rápido e saudáveis, todos os aniversários registrados pela fiel Leica. Quando eles saíram de casa, tomou coragem, as coisas já estavam mais estáveis, casa própria, carro novo, viagens, trocou a velha Leica por uma Canon novinha.
Formaturas, casamentos e os netos, agora em formato digital, instantâneo, sem a necessidade de esperar semanas ou dias para revelar os negativos.
Milhares de registros, álbuns e HD's lotados de instantes. Alguns prêmios por fotos especiais de momentos capturados e congelados no tempo.
Mas a incerteza permanecia...
Os netos encontaram-no sentado no banco do jardim, olhar perdido.
- Vô, vem. Vão cortar o bolo. Tem que tirar a foto. A Vó ta te esperando.
Cinquenta anos de casado não se faz todos os dias. Tinha que registrar, tirar uma foto. Aquilo não podia durar muito tempo mais...