sexta-feira, 7 de agosto de 2015

Tubarões e Rêmoras

Nem TV podia assistir. Para passar o tempo, criava imagens com as manchas que se formaram na laje do teto da cela. Dormir era uma rara alternativa, já que seu companheiro de cela roncava estrepitosamente. A  esperança era ser transferido logo ou sair com habeas corpus já que seu advogado trabalhava nisso e dinheiro não era problema. O cheiro que emanava da "boca de boi", o colchão vagabundo por cima do catre de concreto duro, também não ajudava. Sem falar nos banhos gelados. Bem que a carceragem da Polícia Federal  podia ficar em uma capital do nordeste do pais e não numa das cidades mais úmidas e frias do sul, onde banhos gelados seriam até agradáveis.
Conhecia praticamente todas as praias daquela região, destino usual nas férias quando decidiam não viajar para o exterior. Boa comida, frutos do mar, drinks com nomes picantes, agora somente lembranças. O que mais sentia falta era das pescarias em alto-mar. A brisa e o cheiro da maresia, o horizonte largo, o azul... e dela… sua parceira, confidente e, principalmente, comparsa.
Conheceram-se muito jovens, enquanto cursavam o ensino médio, que se chamava 2° Grau, ela com quinze e ele dezessete, véspera de entrar para universidade. Nunca mais se desgrudaram. Casaram alguns anos depois, tiveram filhos, que agora moravam no exterior. Mas algumas coisas não mudavam com o passar do tempo. Ele sempre fora um romântico. Quando ia visitá-la, já que moravam distante alguns quarteirões, levava uma rosa roubada de um jardim que ficava no caminho. Ela sabia que as rosas eram roubadas mas não parecia se importar.
Passaram no mesmo concurso que prestaram para a Receita, ela com pontuação melhor que a dele, e foram admitidos no mesmo ano.  Mas ao longo da carreira ele havia se destacado, perfil esportista, desinibido, sempre fez "amigos" com facilidade. Acabou por se relacionar com gente importante, tendo acesso a informações privilegiadas. A ela ficara o papel de articuladora, o que executara com exemplar competência e dedicação. Era ela que, nas sombras, arquitetara o crescimento de sua carreira, sugerindo e plantando ideias nas esposas dos superiores e políticos influentes que habitualmente frequentavam os jantares promovidos em seu apartamento. Jantares refinados onde era servido o que de melhor podia se encontrar nesta "província". Muitas vezes ele havia reclamado do preço de alguns ingredientes que achava exagerados, como as doze lagostas frescas que vieram de avião do nordeste, mas ela sempre lhe afirmara: - eram um investimento. Também era seu braço direito na DDR, monitorando subordinados, controlando toda a operação, seus olhos e ouvidos mantendo tudo sob controle enquanto ele se preocupava com os contatos e fazia o papel de relações públicas. Tinha que admitir, desde o início, as principais ideias e o verdadeiro controle havia ficado nas mãos dela. Ele até havia levantado problemas, mas desde que ela havia vencido sua resistência, só tinham prosperado. Eram uma espécie de Robin Hood e Little John, só que aliviavam os alforjes do rei em benefício próprio. Afinal, como ela mesmo dizia, ninguém melhor do que eles para saber o destino do dinheiro que era arrecadado com o pagamento dos impostos, estavam, na verdade, recuperando os recursos amealhados. Sabiam como o sistema funcionava e eram meras engrenagens.
Mas agora, quando mais necessitava, encontrava-se só. Quando fora preso, ela não estava por perto. Achou coincidência, mas depois com o desenrolar dos acontecimentos,  começou a desconfiar. Recordou-se que ela começara a agir de forma estranha algum tempo antes. Não que a situação não o exigisse... com todas aquelas prisões acontecendo. Parecia certo que acabaria chegando até ambos. Mas ela parecia saber de coisas que ele desconhecia. Justamente no dia da operação policial, ela havia saído mais cedo para a academia, afirmando que tinha o dia cheio, e sumira… alguns minutos depois a polícia havia invadido o apartamento.
A mancha no teto próximo da porta da cela parecia uma barbatana. A outra mais adiante, um guarda sol. Em uma das pescarias, havia fisgado um cação de quase um metro e levado quase quarenta minutos para tirá-lo da água. Ao iça-lo para o deck, viram com surpresa que havia um outro peixe esquisito grudado ao primeiro. O velho marinheiro que os acompanhava explicou tratar-se de uma rêmora, um tipo de peixe que se especializara em viver grudado aos outros, principalmente tubarões, tartarugas e arraias, para beneficiar-se das sobras de suas presas e ganhar uma carona, viajando sem gastar energia. Com um sorriso malicioso, enquanto dava mais um gole na latinha de cerveja, o velho comentou que, a sua maneira, as rêmoras amavam os seus tubarões.
Desconfiou que o amor que sua parceira lhe dedicara nos últimos tempos, havia se tornado um "amor de rêmora".
Durante a visita do advogado ficou sabendo que ela havia se entregado, já com um acordo costurado, aderindo à delação premiada. Entregara farta documentação que comprovavam as ações de seu companheiro e dos subordinados.
Seu advogado aconselhara a conformar-se, não sairia tão cedo. Sua rêmora havia transformado-se em lampreia.

* Esta é uma obra de ficção. Qualquer semelhança com nomes, pessoas, fatos ou situações da vida real terá sido mera coincidência?

Nenhum comentário:

Postar um comentário