Só
me lembro da dor no peito enquanto assistia ao último episódio de “Casa de
Papel”. Pensei: fudeu, não vou conseguir saber como terminar...
Felizmente,
ou não, até os paramédicos chegarem a TV ficou ligada e entre um espasmo e
outro consegui acompanhar a trama até o final. Na verdade, ouvi mais do que
assisti. Ouvi quando minha mulher ligava desesperada para a emergência, quando
os paramédicos tentaram a ressuscitação e até quando um deles falou para o
motorista da ambulância que não necessitava mais apressar-se.
Engraçado,
mas continuei escutando mesmo sabendo que não habitava mais aquele corpo.
Algo
muito estranho para mim. Mas tinha sido curioso minha vida inteira, como não
continuar na morte? Afinal, era a primeira vez. Fiquei por ali ouvindo as mais
variadas opiniões a meu respeito. É esclarecedor o que as pessoas falam sobre
você quando imaginam que não está por perto.
Meu
velório foi uma experiência fantástica, e pensar que eu havia pedido para que
não fizessem... Pelo menos a cremação foi realizada. Por um instante receei
sentir algo quando o corpo começou a ser consumido pelas chamas, mas saí do
outro lado ileso.
Quando
me perguntava o que poderia fazer neste estado em que me encontrava, uma porta
se abriu, é uma porta no nada, para o nada, e tenho que admitir, havia uma luz
muito forte saindo por ela, uma luz que não ofuscava. Passei através da porta,
literalmente, não me sentia ligado a mais nada deste lado. Logo em seguida me
encontrei em um imenso vazio pontilhado de estrelas. Milhões de sóis como não poderia
observar da Terra. Uma outra porta se abriu e um senhor simpático de barbas
longas me fez sinal para segui-lo. Passamos para outro ambiente completamente
branco e confortável.
Ele
me chamou pelo nome e pediu que ficasse à vontade. Perguntei quem ele era e o
que ele estava fazendo ali. Perguntas óbvias mas ele respondeu, seus lábios se
mexiam mas as palavras que ouvia em minha mente não correspondiam às que eram
articuladas.
- Sou Deus e você está aqui porque morreu.
Isso
parecia óbvio, mas minha dúvida era outra: Porque eu? Sempre me declarei ateu!
Ele
me olhou com uma expressão de enfado:
-
O mundo anda muito chato, se não desse tanto trabalho eu o destruiria outra
vez. Mas de que adiantaria, vocês não aprenderiam nada, como das outras vezes,
causa perdida.
Meio
encabulado com o seu desabafo, lembrei:
-
O senhor não me respondeu.
-
Ora, gosto de conversar sobre vários assuntos, mas só me aparecem crentes
recitando passagens da bíblia, como se eu não a tivesse escrito. Bem, na verdade
não escrevi, mas inspirei.
-
E quais assuntos Lhe interessam?
-
As maiores realizações da humanidade, suas pinturas mais intrigantes, poemas e
peças dramáticas ou satíricas. As descobertas científicas também me encantam.
Vocês descobrem caminhos que eu jamais sonharia, mesmo sendo onisciente... brincadeira.
Mas, o que mais me encanta é a música. Meninos criativos esses: Ludwig, Amadeus
e Sebastian. Acho que a música deles funciona muito melhor que algumas orações,
por vezes.
Sempre
aprovei todas essas coisas também.
- Quer dizer que o Senhor me trouxe aqui para
falar sobre arte, pois estava entediado?
-
Por que a surpresa, por acaso você tem algo melhor para fazer, por toda a
eternidade?
-
Não, mas deixei vários projetos inacabados do outro lado.
-
Talvez prefira conversar sobre trabalho?
-
Como o Senhor quiser...
-
Então, quando criei todos vocês e aquela chatice do Éden, ficou tudo perfeito,
só que não. Aí me ocorreu a ideia, uma sacada, como diriam na sua profissão.
Resolvi por pimenta no negócio e criei o diabo, tive que inventar toda uma história sobre anjos revoltosos e caídos, mas o pessoal comprou. Como
profissional, o que você achou do meu produto?
-
Muito eficiente, falei.
-
Pois é, mas agora vou te contar por que fiz tudo isso.
E
nas paredes, que não eram paredes, assisti em segundos, desde o Big Bang até a
invenção do smartphone.
Neste
instante uma lancinante dor no peito me fez abrir os olhos e encarar as
luzes de uma sala de emergência...
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