domingo, 20 de setembro de 2015

Selfie Sad

Seus olhos se cruzaram pela primeira vez através do visor da velha câmera polaroid. Ele dedilhava a guitarra sentado no cubo amplificador que estava ligado na tomada da cafeteria ao lado.
Era uma esquina movimentada, sempre conseguia um bom dinheiro. Mas aquela tinha sido uma tarde fraca, até foi possível notar a moça com a polaroid. Quando levantou os olhos do ladrilho e sorriu para ela, ouviu o disparo surdo entre dois acordes. Ela retribuiu o sorriso.
Com os poucos trocados que tinha convidou-a para tomar um café. Enquanto se conheciam e o café esfriava, a foto foi se materializando no plástico.
Ele ficou curioso sobre a câmera, ela contou que o pai trouxera de uma das viagens aos Estados Unidos, lembrança de tempos melhores.
Estava no último ano de medicina quando o pai perdera o emprego de muitos anos. A mãe havia morrido de câncer quando ela tinha 7 anos e ele a criara sozinho. Tinha sido demais para ele, não suportara o último golpe, caíra em uma depressão profunda e não se recuperara. Em uma das visitas que fizera ao pai, que acabou sendo a última, ele havia lhe dado a câmera. Ela só a utilizava em ocasiões especiais, o filme era difícil de encontrar e muito caro.
Fazia residência, mas a grana ainda era curta. Alugava um pequeno apartamento onde vivia com a outra herança do pai, uma velha gata que, na verdade, ela mesma tinha recolhido das ruas quando cursava o ensino médio. No começo o pai havia reclamado, mas percebia a solidão da filha e permitiu que a gata ficasse. Mais tarde quando passou no vestibular e teve que sair de casa, a gata passou a ser a companhia do pai. Afeiçoara-se a ela e passaram a ser a companhia um do outro. Agora uma fazia companhia a outra e ambas sentiam falta dele.
Quando entraram em seu apartamento, a gata se escondeu atrás do sofá. Ela não tinha muito a oferecer, mas ele acabara de ser despejado da república em que vivia. Desde que trancara a faculdade de arquitetura, a grana sumira. Cancelaram a bolsa que recebia e a mãe, que já não estava feliz com um filho arquiteto e sempre desejara que ele seguisse a carreira do pai e fosse advogado, cortara os depósitos em sua conta bancária.
Logo ele estava instalado no apartamento. Quem não gostou da ideia foi a gata. Não se acostumava com a sua presença. Ele não tocava no assunto, era óbvio o carinho da dona pelo animal. A casa estava repleta de instantâneos do bichano tiradas com a polaroid. Dele, apenas uma que fora tirada na tarde em que se conheceram.
A gata foi ficando cada vez mais arredia e quieta. Quase não aparecia. Também não comia. Em visita ao veterinário o diagnóstico foi velhice e um suplemento de vitaminas. Pouco tempo depois encontraram-na morta junto a porta. Mais uma grave perda para ela. Levou um bom tempo para se recuperar.
Ele gostava do tempo que passavam juntos, se bem que estes momentos estavam cada vez mais escassos com o final do período de residência. Tentava contribuir com as despesas da casa com o pouco que ganhava tocando para sua plateia itinerante. Há muito tempo não via a mãe, nem sentia vontade de visita-la. Tentara ligar mas ela não atendera.
Tudo foi ficando cinza, mesmo quando a garota lhe pedia que tocasse sua canção preferida na sacada ao pôr do sol, o que já tinha lhe proporcionado grande prazer ao vê-la sorrindo e com os olhos baços. Agora, tocava sem vontade, mecanicamente.
Ela nada lhe cobrava, apenas a companhia. Mas mesmo isto se tornara demais. Numa manhã pegou sua mochila e a guitarra e desapareceu.
Ele passou a morar na rua, dormia em albergues ou até na praça. Havia vendido a guitarra pois já não tocava mais. Algum tempo depois ela ficou sabendo do acidente. Ele havia sido atropelado por um ônibus. Testemunhas disseram que nem tentara sair da frente do veículo.
O período de residência acabara. Da sacada ela olhava para o perfil dos prédios sob a luz do sol que desaparecia. Pensou em seu futuro e lágrimas rolaram pela face. O estojo com a polaroid estava pendurado no cabide junto a bolsa.

Retirou a câmera do estojo, mirou-se no espelho e acionou o disparador. Logo a imagem se formaria no plástico, mas ela já podia sentir a tristeza alojando-se no coração.

segunda-feira, 14 de setembro de 2015

Semana Farroupilha

Mesmo longe da querência, os nativos do estado mais austral do pais não costumam esquecer da data comemorativa que lhes é mais cara. Em homenagem a todos crioulos desta terra, posto esta apresentação que justifica um passado de muita luta para alicerçar os ideais republicanos e democráticos.  



sexta-feira, 11 de setembro de 2015

segunda-feira, 7 de setembro de 2015

Espelho D'água

O que sinto não é fome,
é desejo.
De um gris soturno e 
uma profundidade baça.

A chuva me alegra,
o breu salienta a luz dos teus olhos
e o alvo da tua pele.

Mas a satisfação é a morte do desejo.
A impossibilidade, seu florescer...
tudo em uma rasa profundidade.



quarta-feira, 19 de agosto de 2015

Shot

Quando a viu pela primeira vez, quase caiu de joelhos. Seu coração fora atingido em cheio. Os olhos amendoados de um profundo negro, poço sem fundo onde a sua alma se perdeu. Não viu escapatória. Estava com a câmera, uma Leica M2. Havia vendido a alma para comprá-la. Primeiro emprego, acabara de sair da universidade formado em engenharia como o pai queria, mas a paixão sempre fora a fotografia. O instante mágico capturado pela lente que se eterniza.
- Posso tirar um retrato?
- Não sei, não te conheço.
- Mas a luz está ótima nos seus cabelos... (não conseguiu pensar em nada melhor, no momento)
Ela sorriu e o sol se apagou. Sentiu que tinha que capturar aquele momento, ele não duraria...
Agosto de 1965, tarde fria na praça, com o chafariz das nereidas como fundo. Diante do sorriso dela, tomou coragem e a convidou para andar até a confeitaria. Tomaram um café e comeram um pastel de Santa Clara. Ela riu dos gracejos dele. Ele achou charmoso as inseguranças que ela tinha em relação ao futuro.
Tempos difíceis, pensar no que dizer, desconfiar dos vizinhos. Colegas de trabalho em quem confiar? Seu exemplar de "O Capital", um do "The Catcher in the Rye" trazido por um amigo dos EUA e 1984 de George Orwell, jaziam embrulhados em muitas camadas de plástico sob um canteiro de margaridas na casa da mãe.
O primeiro encontro de verdade ocorreu em um dos clubes da cidade onde os pais dela eram sócios. Uma matine onde dançaram ao som de Sinatra e beberam Cuba Libre. Pouco tempo depois, noivaram. Em seguida o casamento. Vida ainda difícil, pouco dinheiro, aluguel, mercado. Muitas vezes fotografava, mas só revelava os filmes seis meses depois. Surpresas, fotos ótimas e outras ridículas que nem se lembrava de ter tirado.
Quando o primeiro filho nasceu, o mesmo sentimento de urgência se abateu sobre ele. Pediu ao médico autorização para acompanhar o parto, naquele tempo não era comum. Não contou para ninguém, mas sabe-se lá, vai que a criança não sobreviva muito tempo. Não tinha coragem de confessar nem mesmo a sua esposa, o que ela iria pensar? O médico concordou, tudo registrado, o primeiro choro de seu primogênito. Mais dois vieram e a mesma sensação de urgência.
As crianças cresceram rápido e saudáveis, todos os aniversários registrados pela fiel Leica. Quando eles saíram de casa, tomou coragem, as coisas já estavam mais estáveis, casa própria, carro novo, viagens, trocou a velha Leica por uma Canon novinha.
Formaturas, casamentos e os netos, agora em formato digital, instantâneo, sem a necessidade de esperar semanas ou dias para revelar os negativos.
Milhares de registros, álbuns e HD's lotados de instantes. Alguns prêmios por fotos especiais de momentos capturados e congelados no tempo.
Mas a incerteza permanecia...
Os netos encontaram-no  sentado no banco do jardim, olhar perdido.
- Vô, vem. Vão cortar o bolo. Tem que tirar a foto. A Vó ta te esperando.
Cinquenta anos de casado não se faz todos os dias. Tinha que registrar, tirar uma foto. Aquilo não podia durar muito tempo mais...

quarta-feira, 12 de agosto de 2015

Por que Palavras? Conto Zen

Um monge aproximou-se de seu mestre – que se encontrava em meditação no pátio do Templo à luz da lua – com uma grande dúvida:
“Mestre, aprendi que confiar nas palavras é ilusório; e diante das palavras, o verdadeiro sentido surge através do silêncio. Mas vejo que os Sutras e as recitações são feitas de palavras; que o ensinamento é transmitido pela voz. Se o Dharma está além dos termos, porque os termos são usados para defini-lo?”
O velho sábio respondeu:” As palavras são como um dedo apontando para a Lua; cuida de saber olhar para a Lua, não se preocupe com o dedo que a aponta.”
O monge replicou: “Mas eu não poderia olhar a Lua, sem precisar que algum dedo alheio a indique?”
“Poderia,” confirmou o mestre, “e assim tu o farás, pois ninguém mais pode olhar a lua por ti. As palavras são como bolhas de sabão: frágeis e inconsistentes, desaparecem quando em contato prolongado com o ar. A Lua está e sempre esteve à vista. O Dharma é eterno e completamente revelado. As palavras não podem revelar o que já está revelado desde o Primeiro Princípio.”
“Então,” o monge perguntou,” por que os homens precisam que lhes seja revelado o que já é de seu conhecimento?”
“Porque,” completou o sábio, “da mesma forma que ver a Lua todas as noites faz com que os homens se esqueçam dela pelo simples costume de aceitar sua existência como fato consumado, assim também os homens não confiam na Verdade já revelada pelo simples fato dela se manifestar em todas as coisas, sem distinção. Desta forma, as palavras são um subterfúgio, um adorno para embelezar e atrair nossa atenção. E como qualquer adorno, pode ser valorizado mais do que é necessário.”
O mestre ficou em silêncio durante muito tempo. Então, de súbito, simplesmente apontou para a lua.


Tam Hyuen Van
  (Claudio Miklos)


sexta-feira, 7 de agosto de 2015

Tubarões e Rêmoras

Nem TV podia assistir. Para passar o tempo, criava imagens com as manchas que se formaram na laje do teto da cela. Dormir era uma rara alternativa, já que seu companheiro de cela roncava estrepitosamente. A  esperança era ser transferido logo ou sair com habeas corpus já que seu advogado trabalhava nisso e dinheiro não era problema. O cheiro que emanava da "boca de boi", o colchão vagabundo por cima do catre de concreto duro, também não ajudava. Sem falar nos banhos gelados. Bem que a carceragem da Polícia Federal  podia ficar em uma capital do nordeste do pais e não numa das cidades mais úmidas e frias do sul, onde banhos gelados seriam até agradáveis.
Conhecia praticamente todas as praias daquela região, destino usual nas férias quando decidiam não viajar para o exterior. Boa comida, frutos do mar, drinks com nomes picantes, agora somente lembranças. O que mais sentia falta era das pescarias em alto-mar. A brisa e o cheiro da maresia, o horizonte largo, o azul... e dela… sua parceira, confidente e, principalmente, comparsa.
Conheceram-se muito jovens, enquanto cursavam o ensino médio, que se chamava 2° Grau, ela com quinze e ele dezessete, véspera de entrar para universidade. Nunca mais se desgrudaram. Casaram alguns anos depois, tiveram filhos, que agora moravam no exterior. Mas algumas coisas não mudavam com o passar do tempo. Ele sempre fora um romântico. Quando ia visitá-la, já que moravam distante alguns quarteirões, levava uma rosa roubada de um jardim que ficava no caminho. Ela sabia que as rosas eram roubadas mas não parecia se importar.
Passaram no mesmo concurso que prestaram para a Receita, ela com pontuação melhor que a dele, e foram admitidos no mesmo ano.  Mas ao longo da carreira ele havia se destacado, perfil esportista, desinibido, sempre fez "amigos" com facilidade. Acabou por se relacionar com gente importante, tendo acesso a informações privilegiadas. A ela ficara o papel de articuladora, o que executara com exemplar competência e dedicação. Era ela que, nas sombras, arquitetara o crescimento de sua carreira, sugerindo e plantando ideias nas esposas dos superiores e políticos influentes que habitualmente frequentavam os jantares promovidos em seu apartamento. Jantares refinados onde era servido o que de melhor podia se encontrar nesta "província". Muitas vezes ele havia reclamado do preço de alguns ingredientes que achava exagerados, como as doze lagostas frescas que vieram de avião do nordeste, mas ela sempre lhe afirmara: - eram um investimento. Também era seu braço direito na DDR, monitorando subordinados, controlando toda a operação, seus olhos e ouvidos mantendo tudo sob controle enquanto ele se preocupava com os contatos e fazia o papel de relações públicas. Tinha que admitir, desde o início, as principais ideias e o verdadeiro controle havia ficado nas mãos dela. Ele até havia levantado problemas, mas desde que ela havia vencido sua resistência, só tinham prosperado. Eram uma espécie de Robin Hood e Little John, só que aliviavam os alforjes do rei em benefício próprio. Afinal, como ela mesmo dizia, ninguém melhor do que eles para saber o destino do dinheiro que era arrecadado com o pagamento dos impostos, estavam, na verdade, recuperando os recursos amealhados. Sabiam como o sistema funcionava e eram meras engrenagens.
Mas agora, quando mais necessitava, encontrava-se só. Quando fora preso, ela não estava por perto. Achou coincidência, mas depois com o desenrolar dos acontecimentos,  começou a desconfiar. Recordou-se que ela começara a agir de forma estranha algum tempo antes. Não que a situação não o exigisse... com todas aquelas prisões acontecendo. Parecia certo que acabaria chegando até ambos. Mas ela parecia saber de coisas que ele desconhecia. Justamente no dia da operação policial, ela havia saído mais cedo para a academia, afirmando que tinha o dia cheio, e sumira… alguns minutos depois a polícia havia invadido o apartamento.
A mancha no teto próximo da porta da cela parecia uma barbatana. A outra mais adiante, um guarda sol. Em uma das pescarias, havia fisgado um cação de quase um metro e levado quase quarenta minutos para tirá-lo da água. Ao iça-lo para o deck, viram com surpresa que havia um outro peixe esquisito grudado ao primeiro. O velho marinheiro que os acompanhava explicou tratar-se de uma rêmora, um tipo de peixe que se especializara em viver grudado aos outros, principalmente tubarões, tartarugas e arraias, para beneficiar-se das sobras de suas presas e ganhar uma carona, viajando sem gastar energia. Com um sorriso malicioso, enquanto dava mais um gole na latinha de cerveja, o velho comentou que, a sua maneira, as rêmoras amavam os seus tubarões.
Desconfiou que o amor que sua parceira lhe dedicara nos últimos tempos, havia se tornado um "amor de rêmora".
Durante a visita do advogado ficou sabendo que ela havia se entregado, já com um acordo costurado, aderindo à delação premiada. Entregara farta documentação que comprovavam as ações de seu companheiro e dos subordinados.
Seu advogado aconselhara a conformar-se, não sairia tão cedo. Sua rêmora havia transformado-se em lampreia.

* Esta é uma obra de ficção. Qualquer semelhança com nomes, pessoas, fatos ou situações da vida real terá sido mera coincidência?