domingo, 22 de janeiro de 2017

Morgana

Vinha pela calçada quase aos saltos, mal  tocava o chão. Finalmente acontecera, numa época de precocidade já se sentia deslocada. Aos 16 anos se apaixonara pela primeira vez. A  maioria das suas amigas já tinha várias aventuras para contar e ela um ou outro "crush" somente.
 Mas agora era para valer, sabia disso, tinha valido a pena a espera. Sentia o rosto arder e o coração aos pulos depois do primeiro beijo.
Era uma garota tímida, bonita mas introvertida, sempre sendo preterida pelas mais ousadas. Em sua opinião, seu nome também não ajudava.  A idéia fora  de sua mãe, Morgana em homenagem  à sacerdotisa do lago, sua personagem preferida na lenda do Rei Arthur, livro que a encantara na adolescência. Rendera-lhe todo o tipo de apelido desde que começara a frequentar a escola. Mas para sua surpresa, ele conhecia a origem do nome e disse que o adorava. Tudo perfeito. Mal podia esperar para chegar em casa e contar para a mãe, sua confidente e melhor amiga.
Sentia as faces cada vez mais quentes. Começou a achar que  as pessoas na rua percebiam  o seu rubor.  Nem respondeu ao cumprimento do porteiro e correu para o elevador.  O calor que sentia agora era sufocante, saiu rapidamente do elevador e percebeu que suas roupas começavam a mostrar manchas escuras. Tirou a mochila e procurou a chave. Notou que o nylon da mochila derretia ao toque de seus dedos.  Desistiu da chave, tocou a maçaneta e a porta se abriu, encontrava-se só encostada, sinal de que a mãe estava no apartamento de uma das vizinhas.
Correu para o interior do apartamento no momento que sua roupa íntima começou a incendiar, logo foi o uniforme da escola que estava em chamas. Aos gritos, sem entender, correu para o banheiro, deixando um rastro de trapos queimando no piso de cerâmica.
 Ao tentar abrir a porta do box  o vidro partiu-se em mil pedaços com um estrondo. Apavorada, entrou e tentou girar o registro, enquanto seu cabelo pegava fogo.
O registro do chuveiro começou a ficar vermelho e dissolver-se como em uma pintura de Dali. Agachou-se em  um canto em pânico, sem saber o que fazer enquanto seu corpo inteiro ardia.

Minutos depois sua mãe volta para casa. Não entende a cena que encontra. A mochila em frente a porta aberta, o chão cheio de cinzas, a porta do box quebrada e um coração em brasas no piso do banheiro.

quinta-feira, 19 de janeiro de 2017

segunda-feira, 19 de dezembro de 2016

Passiflora

Poeira suspensa
Lama pegajosa
Espuma que escorre

Pétala suave
Pistilo
Zangão negro, dourado

Forma cardíaca
odor inebriante
reflexo de luz

Fruto, polpa madura
Sabor suave de cura.



* modelo incidental: Pedro Fernandes Ribas

domingo, 4 de dezembro de 2016

Elogio


"O narcisista é o ser mais fácil de ser corrompido,
não se necessita nem dinheiro..."


domingo, 27 de novembro de 2016

quarta-feira, 2 de novembro de 2016

Seu Domingos

Antônio nasceu em uma casa de pau-a-pique, às margens do Arroio das Cabeças. Filho de Francisco, conhecido como Chico, um português emigrado que veio tentar a sorte no Brasil. Aqui, encantou-se por Ricarda, outra emigrada e juntos tiveram três filhos: André, Maria e Antônio.
A vida nunca foi fácil. A moradia era simples, sem nenhum conforto e as atividades do dia a dia, catar e cortar lenha, cuidar da pequena horta, das criações e, sempre que possível, pescar. O pescado era de graça, um reforço alimentar e uma herança lusitana. Seu Chico procurava trabalho na vila, trabalho temporário que naquela época chamavam de changa. Sempre que conseguia, o jantar era mais farto.
Apesar da origem humilde, seu Chico era um homem honrado e não costumava levar desaforo para casa. Pelo que se sabe, por duas vezes quase perdeu a vida precocemente.
A primeira, em uma briga com um gringo desafeto em uma disputa pela primazia em atravessar uma ponte de dormentes sobre um arroio. Da briga, restou um pedaço de seu bigode guardado em um vidrinho com álcool e uma cicatriz no lábio superior.
Na segunda foi mais séria, ao destratar um poderoso criador de gado e proprietário de terras, foi emboscado e amarrado em um capão de mato para ser executado mais tarde. Por sorte, um mascate que havia perdido o trem, seguia pela linha férrea e ao ouvir seus chamados, o desamarrou, libertando-o. No dia seguinte, seu Chico estava no mesmo bolicho, bebendo um liso e contando a história. O poderoso proprietário de terras deve ter desistido de mandar matá-lo, não valia o trabalho.
Mas a história de Antônio se torna peculiar quando seu pai, Francisco, muda seu nome para Domingos, numa tentativa de evitar sua convocação para o serviço militar. Assim, aos dezoito anos, nascia um outro homem.
Em uma quermesse ou em um baile de candeeiro, encantou-se por uma galega e resolveram mudar-se para um povoado próximo, mas também vizinho à ferrovia. Neste lugar arranjou trabalho e logo estavam morando em uma casa com a varanda voltada para o leito da ferrovia. Quase todos os fins de tarde, Domingos sentava ao alpendre e observava a composição passar lentamente. Junto com o olhar, iam seus sonhos.
Em menos de um ano, sua vida passa por nova mudança. Ao chegar em casa, descobre que a galega havia ido embora com um maquinista em uma história de amor que havia começado entre uma janela e um aceno por instantes, todos os dias.
Solitário, Domingos começou a se fazer presente nos bolichos, diariamente. O cigarro e a cachaça eram seus companheiros. Esta situação perdurou por algum tempo, a casa já não cuidada, até encontrar Izaura, mestiça com bugre, mulher quieta e gentil, mas que adorava dançar.
Apesar de todo amor de Izaura, Domingos ainda carregava em seu coração a mágoa e a decepção do abandono. A cachaça e o cigarro acompanhavam-no como velhos companheiros. Uma noite, após a venda fechar, voltava para casa com um saco onde levava um pacote de macarrão e uma lata de sardinhas, almoço para o dia seguinte, e ao tentar atravessar os trilhos do trem, que sempre haviam acompanhado sua existência, tropeçou e devido ao estado etílico não conseguiu colocar-se em pé a tempo de escapar da composição que se aproximava sendo atingido na cabeça, perdendo muito sangue. Somente foi encontrado na manhã seguinte. Nascia novamente, uma terceira vez, felizmente recuperou-se, mas desde aquele dia nunca mais bebeu ou fumou outro cigarro. Um alívio para dona Izaura e para os filhos.
Ao lado dela, sempre em uma relação de poucas palavras, nunca fora de falar muito, criou seis filhos, três homens e três mulheres que cresceram e formaram suas famílias. Quando se encontravam em algum fim de semana, filhos, noras e netos, na face marcada pelo tempo e o sol, podia-se ver um leve sorriso esboçado pelo seu Domingos.
E assim foi, por mais de cinquenta anos, até que Dona Izaura partiu em uma tarde quente, segurando a mão do seu companheiro de uma vida inteira. Apesar de nunca terem se casado e ele ter nascido Antônio e se tornado Domingos.



GLOSSÁRIO:

     1- Changa: trabalho temporário, bico.
     2- Arroio:  riacho, curso d´água.
     3- Capão: palavra de origem Tupi significando “mata redonda” ou “intervalo de mata”.
     4- Bolicho: venda, armazém de beira de estrada.
     5- Liso: dose de cachaça.
     6- Galega: mulher de pele e cabelos claros, normalmente de origem europeia.
     7- Bugre: índio.
     8- Baile de candeeiro: baile normalmente realizado em um galpão ao som de gaita e violão e à luz de candeeiros (lampiões)

domingo, 30 de outubro de 2016

Pranto

Lágrimas se acumulam por trás dos olhos,
formam lagos e turvam a visão.
Teimam em não verter.

Temos tanto porque chorar...
mas a face não se faz molhar.

Um dia as comportas se abrem
diante de um poema, canção ou cena, 
a vista fica clara e a alma não se apequena.