quarta-feira, 20 de maio de 2020

Sedução

Sobre as chamas
O caldeirão fervia
Sob a água
Maçãs, figos em fatias
Cravo, canela e pimenta
Tudo ardia
Nos olhos, marejados, caprichosos
Servido em taças fumegantes
Para mundos rodopiantes
De luxúria, desejosos




quinta-feira, 7 de maio de 2020

Um Santo Voltando para Casa

A história começa com um mata-leão, um soco no estomago, um jeb de esquerda. O discurso de Mantovani na cerimônia de entrega do Nobel de Literatura poderia sair dos lábios de Kurt Cobain ou Bukowski. Porém, como Odisseu após a conquista de Troia, um vazio toma conta de seu espírito, tal qual um flamingo morto, deixando à deriva, por um bom tempo, sua criatividade. Sua agenda se resume a não ter uma agenda, recusando sistematicamente os convites para os mais variados eventos. Quando surge a oportunidade de retornar a sua Ítaca, digo, Salas, um pequeno povoado no sul da Argentina de onde saiu há 40 anos. No último lugar onde desejava estar, Mantovani se vê cercado por seus antigos personagens tendo que enfrentá-los. Mesmo abrindo concessões a seus conterrâneos, descobre que “santo de casa nem sempre faz milagres”. Antigos amores, velhas amizades, despertam desejos reprimidos, masculinidade frágil, reações violentas e manipulações políticas.
Mas, tanto o personagem quanto o ator desempenham muito bem seu papel. O pequeno povoado, excitado pela presença do ilustre filho, aos poucos vai perdendo o interesse diante do modo pouco estrelístico e cínico do escritor que reluta em participar das convenções provincianas. O povoado poderia estar situado no interior da Colômbia, Peru, Santa Lúcia, Trinidad e Tobago ou no Brasil, se tivéssemos um ganhador do Nobel (Argentina tem 5 ganhadores do Nobel, nenhum de literatura). Nas entrelinhas estão referências a Tolstoi e Fernando Pessoa.
Enfim, entre a descoberta da esperança de um novo talento ou dos remanescentes a sua última aula e a trágica cura para sua abstinência literária, renasce um autor que não abdica de seus princípios e só escreve quando tem algo a dizer.
Uma boa direção, um roteiro primoroso e o prêmio de melhor ator em Veneza. Qual seria o discurso de Martinez ao receber o Oscar? O Cidadão Ilustre é um grande filme. 

terça-feira, 5 de maio de 2020

Poesia Torta

Algo incomoda 
na poesia mal escrita
na letra feia e torta
que não diz o que importa

Dos Amores

Amores perfeitos
não sobrevivem
se existem 
somente no VHS
ou no vento sudoeste
para lá de Bangladesh

suportando o peso das horas
do tempo que escoa 
formando lagoas



sexta-feira, 21 de fevereiro de 2020

Just Mercy


Assim caminha a humanidade. Com passos de formiga. E sem, sem vontade. (Lulu Santos)
Mas, ainda bem que caminha. Percebemos com mais clareza quando a indústria, mesmo a do entretenimento, começa a assimilar novos conceitos e incorporar costumes. Claro que sempre haverá os corajosos, os primeiros a atravessar o rio. Mas, aos poucos podemos perceber a água mudando de cor. Aliás, muita água passou por baixo da ponte desde que Mississipi Em Chamas estreou em 1988. Um filme corajoso tratando da temática do racismo, mas ainda com dois atores brancos nos papeis principais (Gene Hackman e Willem Dafoe) e dirigidos pelo excelente Alan Parker. Mas, recentemente começamos a ter filmes estrelados por atores negros em papéis não caricatos ou estereotipados. O excelente Green Book que recebeu os Óscares de Melhor filme, Melhor Ator Coadjuvante (Mahershala Ali) e Melhor Roteiro Adaptado, para citar um exemplo. Existiram exceções como o Oscar de Melhor ator de 1964 para Sidney Poitier no ótimo Lilies of the Field.
Talvez o maior mérito de Just Mercy (Luta por Justiça), seja a excelente e comovente atuação dos atores principais, todos negros. A direção (Destin Daniel Cretton) não compromete o resultado, tratando o assunto (pena de morte e as injustiças irreparáveis), com o peso e a seriedade que o assunto exige. Claro que o racismo permeia toda a trama, mas talvez por retratar a época, é tratado como algo inerente aquela parte do pais (Alabama). As falhas que o sistema judiciário americano se permite beira ao inacreditável (nem gosto de imaginar o nosso), parecendo um roteiro escrito por um autor inepto, assombrando por se tratar de uma história real. O personagem bem representado pelo ótimo Michael B. Jordan nos remete a um Dom Quixote lutando contra gigantes que parecem imaginários e impossíveis de serem vencidos. A atuação de Jamie Foxx, apesar de contida, consegue passar a evolução que vai da conformidade à esperança. Um filme que vale ser visto pela qualidade, mas também por representar um marco na mudança de um paradigma, assim espero.