sexta-feira, 10 de março de 2017

Transideral

No ocaso, 
pendurada no horizonte.
Surge a estrela brilhante
refletindo a luz de outra.

Dupla persona,
rochosa ou gasosa.
Tentando enganar 
aos amantes e poetas,
que a ela ou a ele 
fazem juras e poemas.



quinta-feira, 23 de fevereiro de 2017

Tocaia

        Amarrou o tordilho ao travessão sob a sombra de um eucalipto e dirigiu-se a porta do bolicho pelo caminho poeirento. Passou da luz e do mormaço da tarde para a sombra e o frescor do interior, lá divisou o bolicheiro,  as moscas que esvoaçavam e uma figura oitavada na ponta do balcão de prancha.
        Cumprimentou com um "buenas" e foi respondido pelo bolicheiro, a figura no canto do balcão mal balançou a cabeça coberta pelo chapéu.
        Encostou no balcão e nem foi preciso pedir,  o bolicheiro serviu-lhe um liso de canha  para espantar o calor e passou para a sala dos fundos que funcionava como depósito.
        O homem que não usava esporas não perdeu tempo, aproximou-se , colocou a mão no ombro do recém chegado e sacando da adaga, abriu-lhe um novo sorriso encarnado que ia de uma jugular a outra.
        O sangue misturado  à cachaça escorreu encharcando o lenço branco no pescoço do que morria.
        Seus joelhos dobraram, o corpo rolou pelo chão de terra batida que já absorvia o vermelho escuro do sangue venoso.
        Limpou a adaga nas costas do que já não se mexia, colocou-a na bainha e saiu para a luz e o calor da tarde, deixando o corpo e sobre o balcão, as moedas para sua bebida e de sua vítima.


Glossário:
Tordilho - disse do cavalo de pelagem branca;
Bolicheiro - dono da venda, proprietário do estabelecimento;
Liso de canha - dose de cachaça.

sábado, 18 de fevereiro de 2017

Rebento

O mundo silencia sob a chuva.
Cheiro de terra, perfume de flor,
vida que brota, fruto do amor.




domingo, 29 de janeiro de 2017

Pequeno Conto Zen

Em um templo perdido no Himalaia o discípulo encontra o mestre em um terraço, terminando sua meditação.
Respeitosamente pede licença e pergunta:
 - Mestre, existe uma maneira de mudar o coração de um homem que sofreu por muito tempo?
- Para muitas pessoas o sofrimento funciona como forja, temperando sentimentos e ações, tornando a pessoa mais resistente e equilibrada à interferência do mundo. Mas em alguns casos o coração se torna frio e indiferente.
- Nestes casos mestre, como podemos tocá-lo?
-  Está quase na hora do chá, vá até a cozinha e traga o chá e a manteiga.
Sem questionar o discípulo se afasta.
Alguns minutos depois volta com uma bandeja  laqueada  e ricamente ornada, com um bule fumegante e um pote de manteiga de iaque endurecida pelo frio.
Senta-se  sobre a esteira e espera o mestre, que parece estar em estado contemplativo.
 Após alguns minutos o mestre fala:
- Você notou como  a manteiga estava quando a trouxe da cozinha?
- Sim mestre, estava fria e dura, como uma pedra.
- E como está agora, após alguns minutos sob a luz do sol?
- Já começa a ficar mais amolecida mestre.
- Quando tratamos as pessoas embrutecidas pelo mundo com paciência,  gentileza e atenção seus corações começam a se abrir.
 - Sim mestre!
 - Agora que já é possível, sirva o chá e coloque um pedaço de manteiga.
 O rosto do discípulo iluminou-se em um sorriso, antevendo o desfecho.
Retribuindo o sorriso, o mestre falou:

- A luz do sol e o calor do chá funcionam como a gentileza e a atenção ao aquecer os corações empedernidos, abrindo uma brecha para que o amor e o equilíbrio possam entrar e transformá-los.

domingo, 22 de janeiro de 2017

Morgana

Vinha pela calçada quase aos saltos, mal  tocava o chão. Finalmente acontecera, numa época de precocidade já se sentia deslocada. Aos 16 anos se apaixonara pela primeira vez. A  maioria das suas amigas já tinha várias aventuras para contar e ela um ou outro "crush" somente.
 Mas agora era para valer, sabia disso, tinha valido a pena a espera. Sentia o rosto arder e o coração aos pulos depois do primeiro beijo.
Era uma garota tímida, bonita mas introvertida, sempre sendo preterida pelas mais ousadas. Em sua opinião, seu nome também não ajudava.  A idéia fora  de sua mãe, Morgana em homenagem  à sacerdotisa do lago, sua personagem preferida na lenda do Rei Arthur, livro que a encantara na adolescência. Rendera-lhe todo o tipo de apelido desde que começara a frequentar a escola. Mas para sua surpresa, ele conhecia a origem do nome e disse que o adorava. Tudo perfeito. Mal podia esperar para chegar em casa e contar para a mãe, sua confidente e melhor amiga.
Sentia as faces cada vez mais quentes. Começou a achar que  as pessoas na rua percebiam  o seu rubor.  Nem respondeu ao cumprimento do porteiro e correu para o elevador.  O calor que sentia agora era sufocante, saiu rapidamente do elevador e percebeu que suas roupas começavam a mostrar manchas escuras. Tirou a mochila e procurou a chave. Notou que o nylon da mochila derretia ao toque de seus dedos.  Desistiu da chave, tocou a maçaneta e a porta se abriu, encontrava-se só encostada, sinal de que a mãe estava no apartamento de uma das vizinhas.
Correu para o interior do apartamento no momento que sua roupa íntima começou a incendiar, logo foi o uniforme da escola que estava em chamas. Aos gritos, sem entender, correu para o banheiro, deixando um rastro de trapos queimando no piso de cerâmica.
 Ao tentar abrir a porta do box  o vidro partiu-se em mil pedaços com um estrondo. Apavorada, entrou e tentou girar o registro, enquanto seu cabelo pegava fogo.
O registro do chuveiro começou a ficar vermelho e dissolver-se como em uma pintura de Dali. Agachou-se em  um canto em pânico, sem saber o que fazer enquanto seu corpo inteiro ardia.

Minutos depois sua mãe volta para casa. Não entende a cena que encontra. A mochila em frente a porta aberta, o chão cheio de cinzas, a porta do box quebrada e um coração em brasas no piso do banheiro.

quinta-feira, 19 de janeiro de 2017